domingo, 26 de dezembro de 2010

Escritos natalinos

*Desgarrado do prélio celestial, recolhia-se nos escombros da psique alegórica do universo, fitando o rebanho. Esteve presente desde o início de tudo, antes mesmo da claridade do fogo e de tudo que dele depende. Amava-O como nenhum outro dos seus tivera coragem de amar. Era imperfeito. Lançou a solidão e a paixão entre as criaturas mundanas que habitam o imaginário divino e descobriu que não era digno de carregar a Luz. Despiu-se das cândidas vestes que contornavam o corpo consagrado de um guardião e de toda a glória fausta da matéria eterna.
Os olhos percorriam corações encarnados, pensamentos segregados pela ordem da gênese humana, palavras solitárias da cria. Não sentia nada – sentir é demasiado humano – e nem agia – não era mais um deus.
Certa feita ouvira que o odiavam. Desconfiara de que o preceito fosse verdadeiro, mas até então nenhum dos seus tivera coragem de dizer. Decerto não seria ele o único. Não sentiu ódio ou compaixão – apenas a certeza de estar só. Procurou a essência caída dos céus – o Predileto – e ouviu quarenta vezes o silêncio da negação.

*

Naquele instante, o mito da castidade não encontrou o sentido, mas a experiência que torna o mortal a essência fantástica do orbe instaurado. A criação guiou-se pela Estrela Nova, que purifica a margem ribeira – o reflexo da perfeição – e ilumina a lei de pedra, que viu a sarça ardente e secou o pélago rubro. Os pés não mais tocariam o espelho narciso e a moeda ofereceria somente uma face – a outra.
O artesão limpou-O com a aspereza peculiar do ofício e com a dignidade contemplativa de um cerimonial de devoção. Ela quis pedir a Criança para seus braços, aconchegá-la em seu ventre, porque sabia o fado da escolha fundamental, a mãe virginal que inverteu a ordem do Ocidente, a Eva que integra toda fragilidade humana à maneira de Deus.
Mas não pôde. Diante dos trapos encharcados da sangria, deparou-se com a Sombra, a inversão de quem assiste diante de Deus, que habita as ruínas da grande alegoria e, pela primeira vez, sentiu escapar-lhe a alma pelo instante milagroso da oferta divina que se destina.


Por Luciano Melo

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