segunda-feira, 27 de junho de 2011

A dor de uma nação

Assisti estarrecido e ao mesmo tempo perplexo o espetáculo intitulado: " A queda de um titã"!
O pujante River Plate selou seu destino neste último domingo e caiu para a segunda divisão do futebol argentino ( empatou com Belgrano de Córdoba em 1x1 ), em 110 anos de uma história gloriosa, o gigante portenho jogará entre os humildes e toscos clubes da divisão de acesso argentina.
O Clube que detém 18 milhões de fanáticos torcedores, que na década de 40 ficou conhecido como "La Maquina" e teve entre seus astros: Pederneras, Daniel Passarela, Francescolli, Burrito Ortega e Ayla... Foi sentenciado a um retiro forçado de um ano.
Rios de lágrimas cairam no Monumental de Nunes, river e rio dá no mesmo, um rio de tristeza que alagou as ruas de Buenos Aires.
A violência explodiu, torcedores apaixonados e loucos a solta nas ruas da capital do tango, a trilha sonora não era gardel, estava mais para música de filme de guerra do Oliver Stone.
O River não é o primeiro, muito menos o último gigante a sofrer esta dor, cair de divisão futebolistíca não é uma sentença de morte. Outros titãs do futebol mundial já tiveram esta dor: Juventus de Turin, Milan, Manchester United, Corinthians, Grêmio e Palmeiras já provaram deste sofrimento, nada é para sempre.
O River voltará e aqueles que quase se afogaram em lágrimas se erguerão e unidos vão bradar canções, canções que só os torcedores da bacia do plata conseguem entoar.


Força River!!!

Ed Limas

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Do barroco a Baudelaire: o Santos conquista a América

Ao Juarez in memorian






Confesso, não consegui escrever nestes dias. A você, desprezado leitor deste espaço, gostaria de traçar, nestes últimos dias, algumas mal escritas linhas sobre este histórico confronto entre clubes tão tradicionais do futebol mundial, como Santos e Peñarol. Confesso, até me endividei adquirindo alguns livros sobre a história do futebol sul-americano para não dizer alguma besteira - além das que normalmente já digo - e fornecer ao famigerado espectador um pouco da mística que sustentava o choque entre uruguaios e brasileiros, recheada de episódios violentos e apaixonantes (e quem disse que a paixão e a violência não caminham juntas?). Enfim, durante estas últimas semanas, minha intenção era realizar um pequeno dossiê entre Montevidéu e Santos-São Paulo, mas, confesso, não tive condições psicológicas para tal.
Não pude porque nem de perto sou da linhagem de Nelson Rodrigues, Mário Filho, Armando Nogueira ou João Saldanha. Estes, torcedores apaixonados por seus clubes, eram, sobretudo, cronistas ímpares de futebol. Tinham os ouvidos aguçados pela Musa inspiradora e pingavam o veneno da palava em cada boca incalta de leitor. Transformavam cada linha do amarelado jornal numa vereda poética que sublimava o estádio de futebol e tomava de assalto o coração de cada um de nós. Eu, confesso, sou aquele que ama o seu clube - e só! Não tenho a pena destes escritores - e por isso sou aquele garoto que espera em vão um olhar despretencioso de Afrodite ou um lance fortuito para oferecer um mimo - mas sempre há alguém, brindado pelos deuses, com um arsenal melhor de caça.
Por isso, confesso, indigno de expressar dignamente o mágico triunfo santista na noite de ontem, recorro a dois textos já publicados aqui para fazer jus à conquista continental. Desculpe, Nelson, Mário, Armando e João. Não tenho ouvidos para a Musa.


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Nascer, Viver e, no Santos, Morrer!

Sobre albatrozes, gansos e cisnes



Luciano Melo


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O albatroz. Charles Baudelaire escreveu, em 1842, o esboço do segundo canto de As Flores do Mal, intitulado O Albatroz. Se esta é a obra angular da modernidade literária, este conjunto de quatro quartetos é o retrato do artista perante a um novo momento, um inédito instante. Para elucidarmos do que se trata o poema, faço uma breve sinopse: por um mero prazer mórbido, os marinheiros têm o sui generis passatempo de capturar albatrozes que repousam no convés do navio. A ave, como se sabe, tem um modo cambaleante de caminhar, graças às imensas asas que desequilibram a rigidez e a postura do corpo do animal, pendendo-o de um lado para outro e, por assim dizer, proporcionando facilidades ao seu seqüestrador. Os marujos então estendem o quanto podem as asas do albatroz em forma de crucifixo pelas tábuas do tombadilho, prendendo-as pelos pés. Indefeso, envergonhado por tamanho rebaixamento, o imenso pássaro deixa-se pender perante a crueldade dos homens. Um, baforando um imenso cachimbo, entope-lhe o bico de fumaça; outro, coxeando pela borda da embarcação, ridiculariza os passos ziguezagueantes do indefeso bípede até que, cansados das tripudias, os marinheiros libertam o animal. Ele então, cabisbaixo, ainda um pouco atenuado pela tortura, tenta se reerguer na posição vertical, apoiando-se nos ombros desengonçados quando, retomado o equilíbrio, sacode bruscamente as asas e impera ao longe do firmamento.O artista moderno, segundo Baudelaire, é como o albatroz. Nas alturas, suporta o peso mundo, como diria Drummond (falaremos mais dele adiante), o mais baudelairiano dos nossos poetas. Mas, em terra firme, confinado à mesquinharia do cotidiano, é lançado à sanha de marinheiros sedentos por baforar enxofre em suas fuças. Depois d’As Flores do Mal, o poeta da modernidade é, por excelência, o transeunte deslocado, aquele que perambula pelas calçadas a observar a perversidade da vida urbana. Não se encaixa em coisa alguma, não vê sentido no alvoroço dos movimentos sociais, no bel prazer do conforto citadino. E como em nada se apoia, sente-se frágil demais aos costumes da civilização.Como prometido, retomemos ao poeta de Itabira. Um dos mais intrigantes escritos de Drummond é O Elefante, presente no fabuloso A Rosa do Povo, o qual inicia com os seguintes versos (Fabrico um elefante / de meus poucos recursos. / Um tanto de madeira / tirado a velhos móveis / talvez lhe dê apoio. / E o encho de algodão, / de paina, de doçura.). Você encontraria um ser mais deslocado, perambulante e frágil ser do que um elefante cruzando a urbe? Acho que não. E preciso dizer de quem se trata o elefante?Ganso. (25 de abril de 2010. Estádio do Pacaembu). A cobrança de escanteio é curta, rasteira. Paulo Henrique Ganso recebe a bola a dois metros do vértice interior da área. Repousa o pé esquerdo por cima dela. Não pode retornar a bola ao executor do escanteio, pois este estará à frente da linha de zagueiros. Também não tem a quem passar, já que a área tem, no mínimo, dezesseis jogadores, entre companheiros e adversários. Chutar a gol é impossível. A bola desviaria em alguma canela intrometida. Os inimigos insaciáveis vêm à caça, cercando-o. (Está se lembrando do albatroz e os marinheiros?) Sente que logo pisarão em suas frágeis asas, baforarão enxofre em seu rosto, vibrarão arrancando a doçura de sua arte. A poucos metros dali, o tobogã se inflama com urros hostis, escarnecendo-se aos berros da incômoda cena ali testemunhada. Ganso, então, toma uma decisão, digamos, imponderável. Recolhe a bola para a linha de fundo. Sucumbiu perante a adversidade? Deixou-se pender à crueldade dos homens como a ave infortunada de Baudelaire? Três opositores o circundam, impedindo sua saída. Não há o que fazer. Então, P. H. Ganso suspende a bola com finura, com delicadeza, (perdão, Drummond) com a doçura de um elefante. O albatroz suspendeu as asas. A pelota faz uma polida parábola, perfeita como um arco renascentista. A multidão percorre a trajetória tal qual o traço de um compasso até a esfera encontrar a cabeça do atacante santista, arrematando a obra-prima com a derradeira pincelada do gol. Genial poesia.Paulo Henrique Ganso é um albatroz da bola. Não tem a elegância do falcão (o Rei de Roma?) nem a fome do galo (de Quintino?). Nesta rinha, é apenas um desajeitado caminhante. Tem um caminhar falso, desmedido, com deselegância discreta (desculpe, Caetano). O tórax é frágil, quase corcunda. Sem a bola nos pés, apenas caminha de esguio diante da pobreza cotidiana. Com ela, é o majestoso que “enfrenta os vendavais e ri da seta no ar”. (Charles Baudelaire. O Albatroz.)Cisne. O ex-técnico de Paulo Henrique, o esforçado meia-direita Cuca, disse, certa vez, quando ainda Ganso atuava na base, que o jovem atleta não dispunha de qualidades para alçar ao time principal do Santos F.C. Não o culpo. É difícil reconhecer o pequenino cisne que, deslocado entre tantos patinhos, é o feio do grupo. Faltava-lhe a obediência tática, o apuro físico, a velocidade do arranque, a entrega desmedida ao resultado. Após sua estreia no comando do Flamengo, seu técnico no vice-Mundial Sub-20, Rogério Lourenço, disse que sempre sacava Ganso da equipe pois o jogador não cumpria suas determinações táticas. “Desobediente, então”, indagou o perspicaz repórter. “Não, desligado”, respondeu o treinador. Eu diria um torto, um desajustado. Parafraseando novamente o itabirense, “um gauche na vida”.Nesta época, Ganso ainda era um patinho feio para Cuca e Rogério Lourenço. Menos para Giovanni, que o trouxe com quatorze anos para o Santos F.C. O messias já via o cisne que Paulo Henrique se tornaria. Uma espécie reconhece a outra.

O drible barroco de Neymar

por Luciano Melo

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De todo o espólio nelsonrodriguiano, a crônica “Garrincha, passarinho apedrejado”, publicada em 23 de junho de 1962, na extinta revista carioca Fatos & Fotos, consolidou-se num dos mais lapidares exemplos de perfeição criativa que o mestre atingiu ao tratar de futebol. Apenas para efeito de contextualização, já que para mim basta a maestria alcançada por Nelson Rodrigues ao expor, em diminuto texto, elementos sociais e antropológicos da identidade brasileira, o escrito trata da semifinal Brasil 4 x 2 Chile, pela Copa do Mundo de 1962. Com a bondade angelical de Mané, um ser de tamanha delicadeza no trato com a bola e com a vida no qual, segundo Nelson Rodrigues, quem se aproximava dele tinha a vontade de lhe oferecer alpiste na mão.Brilhante analogia, Nelson.Daí seu espanto na expulsão de Garrinha ao revidar um soco do adversário no final da partida. Mané seria impossível de praticar tal agressão. Respondia aos “joões” fazendo-os patinar diante de sua poesia escrita “aos pés”, como no bailado flutuante de Fred Astaire ou na hipnotizante troca de pernas de Muhammad Ali. Mas a principal indignação – e mote para a brilhante crônica – estava na saída de Garrincha do campo, ao ser alvejado na cabeça por uma pedrada vinda da arquibancada. Tolos e ingratos chilenos, retribuindo assim tamanho espetáculo oferecido por um trapezista de pernas tortas, um gênio incompreendido por ele próprio, um pássaro que vê na graça de seu ofício apenas o seu ‘modus vivendi': voar.Transcrevo o final da crônica:“Apedrejaram Garrincha e vencemos.Eis o mistério do escrete e do Brasil. O time ou o país que tem um Mané é imbatível. Hoje, sabemos que o problema de cada um de nós é ser ou não ser Garrincha. Deslumbrante país seria este, maior que a Rússia, maior que os Estados Unidos, se fossemos 75 milhões de Garrinchas.”Esta é a síntese antropológica da identidade do país pelo traço de Nelson Rodrigues. Não a ingenuidade tola, demagógica e hipócrita, como tão bem assinalou em seu teatro invasivo. Mas a pureza de um pássaro que responde aos dissabores nacionais com a destreza de ser alvejado por pedras e manter a dignidade do ofício inalterada - não nos esqueçamos que quatro dias após o incidente, Garrincha e o escrete canarinho seriam bicampeões mundiais.Salve a rasa observação das mazelas sociais inserida numa crônica futebolística! Quem há de dizer que Nelson não tinha razão? Se não cabe a investigações acadêmicas da sociologia tupiniquim, ao menos serve para o pássaro Mané.
A mim, basta.Como basta o debute de Neymar em 2011.Sem “comparar o incomparável”, horas após a histórica apresentação de Neymar contra o Paraguai, voltou à tona sua declaração de que o “estilo” de seu futebol se igualava ao de Garrincha, no repertório endiabrado de dribles e na conseqüente desmoralização dos adversários – os “joões” tão familiarizados ao Mané. Mesmo entendendo a excitação do público diante de uma raríssima pérola do futebol brasileiro ou uma descabida heresia de “comparar o incomparável”, como defendem os saudosistas, não há o que comparar entre Garrincha e Neymar. Ouvi desde criança meu pai afirmar que Pelé e Garrincha não jogavam futebol, mas algo que, não encontrando pares com quem disputar, era parecido com o nosso ‘jogo de bola’. Em outras palavras: faziam algo “similar” ao futebol. Primorosa definição.Então, sem comparar “estilos” de jogo entre um e outro, como disse Neymar, me assanho a reafirmar que não há relações nos dois porque Neymar não é Garrincha (óbvio!), mas Garrincha também não é Neymar (?!).O que equiparo aqui não é a desproporcional discussão “quem foi melhor?”, por razões cristalinas, como a de comparar um ex-atleta a outro ainda em atividade, ou pior: Mané, como Pelé, não “jogavam” futebol, logo, nada se compara a eles. Desculpe, respeitável leitor, no entanto aprendi a amar futebol por causa do meu velho, e não vou discordar dele aqui. Como afirmei, cresci com isso. Não há como ser de outra forma. Garrincha e Pelé são inquestionáveis. E incomparáveis.Porém, o que esboço é confrontar características futebolísticas daquilo que é mais caro a Garrincha e Neymar: o drible. Tal qual Nelson Rodrigues atribui aos gracejos de Mané a delicadeza de uma raça - e a triste analogia a um passarinho apedrejado – recorro ao ‘anjo pornográfico’ para badular Neymar na mesma proporção “zoomorfizada”, ou seja, desumanizando o artista ao constituí-lo de “bicho” para, enfim, “antropomorfizá-lo”. Não farei como René Simões e denominá-lo de monstro, apesar do assombro que repercutiu sua atuação. Mas na busca de atribuir a seus dribles descomunais uma personalidade aos moldes rodriguianos, não encontro outra similaridade senão em Pégaso.Pégaso – ou Pégasus -, o cavalo alado, surgiu do sangue da cabeça decepada de Medusa por Perseu. Como prole de Medusa correndo pelas veias, Pégaso herdou uma individualidade infernal, um animal praticamente indomável. Oferecido às musas por Minerva, é considerado o presente dos poetas e evocado, por exemplo, por Milton e Shakespeare.É justamente neste corcel, dedicado às musas e, em conseqüência, aos poetas, que remeto ao controle e desafio que Neymar impõe durante uma partida. Uma das primeiras impressões que me causou ao vê-lo passar sem pedir licença pelos adversários foi a de quase flutuar pelo gramado com a bola nos pés. Não sei se pelo físico franzino, de pernas e braços esguios e ombros circunflexos, mas é hipnotizante como a jovem promessa parece transpor os adversários sem o mínimo esforço, abrindo as asas em vôos rasantes e certeiros, como o corpo alado de um Pégaso.E o rodriguiano “pássaro” Mané, também não voa? Não, na acepção do termo. O pássaro Garrincha, para Nelson Rodrigues, encontra significado no voo do ofício de Mané em campo, a tradução de um ser angelical, incapaz de ofender ou agredir qualquer pessoa, seja ela adversário ou não. E por tamanha incompreensão humana, seu apedrejamento configura-se numa imagem martirizada, cristã. Nelson parece pedir desculpas ao gênio de pernas tortas pela intolerância do público chileno; que compreendesse o flagelo de ser prostrado em sua própria casa pelo escrete canarinho. É como se nas entrelinhas, Nelson deixasse transparecer: “Perdoe, Mané, eles não sabem o que fazem”.
Mais nelsonrodriguiano, impossível.Já o futebol de Neymar é pagão (lembrou-se de Pagão, outro imortal jogador santista?). Evoca o mitológico Pégaso no controle subumano de caminhar sobre o ar sobrepujando-se a marcadores sedentos em surrá-lo, extinguir sua habilidade e magia por meio de empurrões, socos e pontapés. Impossível. Se o cristianizado Mané Garrincha, adequadamente chamado de o “anjo de pernas tortas”, impunha certa piedade a seus marcadores por tratá-los sem distinção de “joões”, Neymar é maquiavélico ao extremo: faz questão de impingir o desprezo e a humilhação em praça pública. Seu ritual de dança pré-ritmizada a cada gol é a ridicularização do oponente, tratando-o com tamanho desprezo ao tornar o gol assinalado fator secundário, apenas o leitmotiv do ritual frenético de seus passos. Como esquecer do “chapéu” em Chicão, do Corinthians, com o jogo paralisado? Ou da “paradinha” vexatória imposta a Rogério Ceni, do São Paulo? Ou do descontrole emocional ao final de uma partida, “jurando” um atleta do Ceará? Ou da descompostura hierárquica diante de seu técnico, Dorival Júnior? Tudo sob os holofotes do mundo, sem qualquer piedade cristã. Tal qual a fúria de Pégaso. Um “monstro”, segundo René Simões.O paganismo de Neymar também se ostenta naquilo que a cristandade capitula como pecado mortal: a vaidade. O seu moicano estilizado, longe da representação de resistência punk em tempos idos, aproxima-se dos pequenos chifres e cabelos selvagens dos sátiros, divindades gregas que guardavam os bosques e os campos. Neymar sabe muito bem onde impõe sua arte pagã.Se não bastasse a flutuação que desafia o sentido e a lógica dos mortais, por vezes Neymar faz desaparecer a bola sob seus pés. Repare no segundo gol deste último jogo: ele avança pela intermediária, acompanhado por dois marcadores paraguaios. Os adversários não oferecem combate, apenas se retraem. Neymar carrega a bola até invadir a área. Em milésimas frações de segundo, num lance de olhar repara em Henrique, livre na marca do pênalti, e no goleiro saindo para fechar o ângulo direito. Mas repare mesmo, leitor, com preciosa atenção, nesta micronésima fatia temporal, que a bola, com num passe de mágica, some! Ela retorna diante dos nossos olhos quando Neymar corta os dois zagueiros para a esquerda da defesa e suavemente desliza a bola à direita do goleiro – o famoso contrapé, no jargão futebolístico.Em relação à cadência no drible, os ritmos de Garrinha e Neymar se opõem. A finta de Mané é cristalina, límpida, pura, observada a quilômetros de distância. Muitas vezes a bola fica imóvel no gramado e apenas o corpo de Garrincha vai de um lado para outro, obrigando os adversários às suas ordens de movimento, imantando-os. Em outros momentos, com o marcador à frente, dispara com a bola nos pés e freia com rispidez, impulsionando o antagonista em sentido contrário sem tocá-lo, valendo-se da gravidade de Newton. Tudo muito plástico, muito nítido. A bola sempre à vista, flamejante. O objeto da existência divina na placidez diante dos olhos, como a simbologia cristã no uso de seus artefatos ritualísticos: a hóstia, o cálice, a cruz.Já Neymar, se há certa cristandade em seu futebol, é o craque barroco. Seu artifício requintado do tromp-l’oeil (engana-olho), técnica de escultores quinhentistas para figuras angelicais, atribuindo às peças uma espécie de tridimensionalidade, é o mesmo desafio que Rubens ou Rembrandt propunham em seus quadros, um ardor temperado ente claro-escuro que muito se assemelhava à visão dualista barroca, entre a observação antropocêntrica e a cósmica universal.Neymar tenta se equilibrar neste conflito: ao desaparecer com a bola, seu drible desmorona o resquício moral do oponente, enganando-o aos olhos de todos. Isso parece ser honesto?, deve se perguntar a todo instante. Garrincha não saberia responder.
Neymar sabe.O paganismo de seu futebol não o pune. Graças a Deus.