terça-feira, 19 de outubro de 2010

Os mineiros do Chile e o jogo que ninguém viu

por Luciano Melo
Ninguém, ninguém mesmo, nem os pouco mais de 6.000 pagantes, nem os parcos jornalistas ali presentes e muito menos os jogadores da partida lembravam-se daquele 21 de julho de 1985, quando O’Higgins e Cobresal se enfrentaram no modesto estádio “El Teniente”, pelo Clausura, um dos dois torneios da 1° divisão do futebol chileno.O El Teniente, casa do Club Deportivo O’Higgins, fica em Rancágua, capital da Província de Cachapoal, região central do Chile. Apesar das dimensões acanhadas e pouco significar para a história do futebol chileno, foi sede do grupo 4 na Copa do Mundo de 1962, abrigando jogos de Argentina, Inglaterra, Hungria e Bulgária. Mas como sede d’O Celeste, como o O'Higgins é chamado pelos torcedores, não há muito o que celebrar. Sem nenhum título de expressão no Chile, o time se orgulha do último “campeonato” conquistado, o acesso à divisão maior, em 1986. A não ser pelo fato de ter recebido o Cobresal em 21 de julho de 1985, num jogo (agora) histórico, mas que ninguém lembra.A partida contra os Mineiros do Cobresal valia muito para o Celeste, principalmente para Manuel Gonzáles, um esforçado cabeça-de-área. Fora aquele jogo, apenas outros oito ele disputou pelo O’Higgins antes de abandonar a carreira esportiva. Logo de início, o “filho de Rancágua” percebeu que não iria muito longe correndo em gramados chilenos. Faltava-lhe técnica e fôlego para acompanhar os adversários talentosos da principal divisão de futebol do país – retrato bem diferente de quando queimava os pés nas pedras em campinhos improvisados às margens das mineradoras da Baden Cooper Company, onde o pai passava dez horas por dia explorando cobre. Mas sabia que se não fosse pelo futebol, sua vida na pequenina cidade estaria genealogicamente reclusa aos minérios. Por isso Gonzáles desistiu de Rancágua. Das pedras, do cobre, do futebol.Contra o badalado Cobresal, Gonzáles depositava os últimos suspiros numa carreira fadada ao fracasso. No entanto, como um aplicado volante, não encontrava a marcação nos meias e atacantes serelepes dos mineiros, provocando um infernal bailado que Gonzáles só conseguia aplacar a troco de uns pontapés.Durante a década de 80, o Club de Deportes Cobresal, time de maior torcida de Copiapó, capital da região de Atacama, era o que se costumou chamar de um “celeiro de craques”. As jovens promessas surgiam do El Cobre (estádio do Cobresal) como diamantes e a equipe negociava seus futuros craques com o apetite de um explorador de minério. Para se ter uma ideia, os Mineiros (no Chile, assim é conhecido o time) se deram ao luxo de emprestar o promissor atacante Iván Zamorano naquele 1985, o que foi de bom grado para Manuel Gonzáles. Mesmo assim, era difícil parar o mineiro camisa 8 e sua perninha direita infalível. Seu nome, Frankin Lobos.Lobos, o “Morteiro Mágico”, era um daqueles raros meias que custam a aparecer. Habilidoso, era um exímio armador e cobrador de faltas. Na base, era quem executava centenas de cruzamentos semanais para o aprimoramento de cabeçadas dos jovens atacantes, principalmente para Iván Zamorano. Já no elenco principal, foi um dos responsáveis pelo título da Copa do Chile de 1987 sobre o poderoso Colo-Colo.Mas não era um fora de série. Chegou a ser lembrado em algumas convocações para a seleção chilena, como no pré-olímpico de 1984, mas sem muito brilho. O pedigree de uma transferência para o futebol internacional também desmoronava, pois era impossível competir com tantos meias brilhantes que o continente produzia: Romerito, Rubem Paz, Francescoli e, claro, Diego Maradona. Assim, Franklin Lobos atuou apenas em clubes de pouca importância no Chile até encerrar a carreira em 1996.Depois daquele (hoje, histórico) O’Higgins e Cobresal de 1985, as vidas de Manuel Gonzáles e Franklin Lobos não se cruzaram mais. O cabeça-de-área celeste tentou cursar medicina em Santiago, sem muito sucesso por parcas condições financeiras. Conseguiu a muito custo o diploma de enfermagem e atualmente é servidor público como socorrista. Quando soube da convocação para o resgate na mina de San José, diferente dos colegas enfermeiros, posicionou-se como o primeiro a descer pela cápsula. A experiência vivida pelo “filho de Rancágua” nos campinhos de minério do serviço do pai familiarizou-o com as condições geográficas do local. Seguro e confiante, foi o primeiro do grupo de resgate a entrar na mina e o último a sair. Afundados por 700 metros, após vinte cinco anos os caminhos do voluntarioso volante e do habilidoso meia voltaram a se encontrar. Depois de largar profissionalmente o futebol, Lobos investiu um pouco das economias da bola em caminhões. Passou a fazer frotas carregadas de minérios e trabalhava na mina San José há quatro anos. E depois de 69 dias soterrado, voltou a enxergar o céu fazendo embaixadinhas com a perna direita que um dia lhe rendeu a fama de “Morteiro Mágico”. A magia tornou-se realidade.Todos, todos mesmo, os milhões de espectadores, os incontáveis jornalistas ali presentes e os jogadores Manuel Gonzáles e Franklin Lobos lembram-se daquele 13 de outubro de 2010. A diferença é que agora jogam pelo mesmo time, numa partida em que os dois saíram vitoriosos. O celeste Gonzáles devolveu o azul do firmamento ao mineiro Lobos. Tal qual um dia escreveram os celestes e os mineiros do O’Higgins e do Cobresal, em 21 de julho de 1985. O jogo ninguém se lembra.Ah, o placar daquela partida no histórico estádio El Tenente: 0 a 0. E quem se importa?



Manuel Gonzáles, o 2° da direita para a esquerda, com a equipe de resgate



Franklin Lobos logo após sair da mina


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