quinta-feira, 1 de julho de 2010

O futebol liberal


por Luciano Melo
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Futebol total. Carrossel holandês. Laranja Mecânica. Assim ficou conhecida a maior revolução futebolística de todos os tempos, a seleção da Holanda que disputou a Copa do Mundo de 1974, na Alemanha. Foi o início de uma nova maneira de ler um jogo de futebol, não entre compartimentos estanques entre “defesa” e “ataque”, mas sistemas “defensivo” e “ofensivo”. Em outras palavras: adequação e competência tática aplicadas às variações de uma partida.
Talvez devêssemos ler o futebol – e todo o universo que o integra – como uma metáfora social orgânica, vinculando a ideologia aplicada a determinado sistema de jogo ao “modus operandi” de um pensamento sócio-histórico vigente. Quem sabe a provocação esteja em posicionar-se diante de uma disputa esportiva não apenas pelo viés lúdico, como uma “caixinha de surpresas” e não restringindo o exame a tão somente resultados, mas de organização estratégica, princípios de ordenação social. Quiçá seja este novo olhar para a prática do futebol que a equipe holandesa trouxe ao espectador.
Em 1972, a Holanda, sob governo esquerdista-liberal, promove o relatório da Comissão Baan em que se baliza as drogas “pesadas” (heroína, cocaína, morfina) e as “leves” (como a maconha), permitindo que estas fossem comercializadas em pontos de coffe-shops. A aquisição dos entorpecentes é igualitária, sem restrições judiciais. O consumo legalizado é a afirmação da sociedade holandesa cônscia do livre-arbítrio individual em razão da sintaxe coletiva. O pilar desta convivência resulta, portanto, no pluralismo de ideias que tece e caracteriza o cidadão holandês, como a regulamentação jurídica da prostituição e a união civil de homossexuais.
O convívio social holandês então pauta-se, desde a década de 70 (precisamente 1967, com a vitória da esquerda do “Democratas 66”), na funcionalidade de regras que proporcionam a liberdade do indivíduo como força-motriz de harmonia e tolerância sociais. Tal qual a Holanda-74.
Na verdade, o time holandês que assombrou o mundo já sinalizava sua eficiência em anos anteriores. O Ajax do futuro técnico da seleção, Rinus Michels, e do gênio Johannes Cruyff era a base que encantaria os solos alemães. O termo “futebol total” surgiu em 1967 (coincidência, não?) depois de 5 x 1 da equipe holandesa no poderoso Liverpool, da Inglaterra. O polimento de um sistema tático que não estagnava posições em campo comprovou o poderio do Ajax nas conquistas da Liga dos Campeões de 1971, 1972 e 1973 (este também ano do Mundial Interclubes). Não é dispendioso relacionar uma organização tática ordenada em que todos cooperam entre si, defensiva e ofensivamente, com o alvedrio coletivo da sociedade holandesa da época. Como o “futebol total”, a “liberdade total” também se estreitou na leitura futebolística e social do caso holandês. Retomo a provocação citada anteriormente: seria possível descartar da leitura de um fato esportivo a estrutura social que alicerça determinado acontecimento? Tratando-se do nosso objeto de análise, sem a abertura de leis que privilegiavam o livre-arbítrio em prol do objetivo coletivo, poderíamos imaginar um grupo de atletas dispostos a encarnar o espírito da solidariedade mútua, de contribuição e ocupação de espaços visando plenitudes defensiva e ofensiva, sem já vivenciarem tal modo de convivência em seu cotidiano? Tenho sérias dúvidas.
Este texto continua...
Já avanço a madrugada e gostaria ainda de tratar de tanta coisa. Revi os compactos da campanha da Holanda-74 e são primores, genuínas aulas da prática do futebol. Diante do futebol sul-americano, estraçalharam o Uruguai na estreia num “enganoso” 2x0, fizeram 4x0 na Argentina, no que é considerado o melhor primeiro tempo da história das Copas, e simplesmente atropelaram o Brasil em 2x0, numa carnificina dos brasileiros contra os holandeses, comprovando a superioridade tática, técnica e intelectual do “Carrossel”. Mas estou morrendo de sono e preciso dormir um pouco.
Até porque, daqui a poucas horas, Brasil e Holanda jogam pelas quartas-de-final da Copa
E nem eu e nem você queremos perder o jogo, certo?


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