sexta-feira, 30 de abril de 2010

Sobre albatrozes, gansos e cisnes

por Luciano Melo
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O albatroz. Charles Baudelaire escreveu, em 1842, o esboço do segundo canto de As Flores do Mal, intitulado O Albatroz. Se esta é a obra angular da modernidade literária, este conjunto de quatro quartetos é o retrato do artista perante a um novo momento, um inédito instante. Para elucidarmos do que se trata o poema, faço uma breve sinopse: por um mero prazer mórbido, os marinheiros têm o sui generis passatempo de capturar albatrozes que repousam no convés do navio. A ave, como se sabe, tem um modo cambaleante de caminhar, graças às imensas asas que desequilibram a rigidez e a postura do corpo do animal, pendendo-o de um lado para outro e, por assim dizer, proporcionando facilidades ao seu seqüestrador. Os marujos então estendem o quanto podem as asas do albatroz em forma de crucifixo pelas tábuas do tombadilho, prendendo-as pelos pés. Indefeso, envergonhado por tamanho rebaixamento, o imenso pássaro deixa-se pender perante a crueldade dos homens. Um, baforando um imenso cachimbo, entope-lhe o bico de fumaça; outro, coxeando pela borda da embarcação, ridiculariza os passos ziguezagueantes do indefeso bípede até que, cansados das tripudias, os marinheiros libertam o animal. Ele então, cabisbaixo, ainda um pouco atenuado pela tortura, tenta se reerguer na posição vertical, apoiando-se nos ombros desengonçados quando, retomado o equilíbrio, sacode bruscamente as asas e impera ao longe do firmamento.
O artista moderno, segundo Baudelaire, é como o albatroz. Nas alturas, suporta o peso mundo, como diria Drummond (falaremos mais dele adiante), o mais baudelairiano dos nossos poetas. Mas, em terra firme, confinado à mesquinharia do cotidiano, é lançado à sanha de marinheiros sedentos por baforar enxofre em suas fuças. Depois d’As Flores do Mal, o poeta da modernidade é, por excelência, o transeunte deslocado, aquele que perambula pelas calçadas a observar a perversidade da vida urbana. Não se encaixa em coisa alguma, não vê sentido no alvoroço dos movimentos sociais, no bel prazer do conforto citadino. E como em nada se apoia, sente-se frágil demais aos costumes da civilização.
Como prometido, retomemos ao poeta de Itabira. Um dos mais intrigantes escritos de Drummond é O Elefante, presente no fabuloso A Rosa do Povo, o qual inicia com os seguintes versos (Fabrico um elefante / de meus poucos recursos. / Um tanto de madeira / tirado a velhos móveis / talvez lhe dê apoio. / E o encho de algodão, / de paina, de doçura.). Você encontraria um ser mais deslocado, perambulante e frágil ser do que um elefante cruzando a urbe? Acho que não. E preciso dizer de quem se trata o elefante?
Ganso. (25 de abril de 2010. Estádio do Pacaembu). A cobrança de escanteio é curta, rasteira. Paulo Henrique Ganso recebe a bola a dois metros do vértice interior da área. Repousa o pé esquerdo por cima dela. Não pode retornar a bola ao executor do escanteio, pois este estará à frente da linha de zagueiros. Também não tem a quem passar, já que a área tem, no mínimo, dezesseis jogadores, entre companheiros e adversários. Chutar a gol é impossível. A bola desviaria em alguma canela intrometida. Os inimigos insaciáveis vêm à caça, cercando-o. (Está se lembrando do albatroz e os marinheiros?) Sente que logo pisarão em suas frágeis asas, baforarão enxofre em seu rosto, vibrarão arrancando a doçura de sua arte. A poucos metros dali, o tobogã se inflama com urros hostis, escarnecendo-se aos berros da incômoda cena ali testemunhada. Ganso, então, toma uma decisão, digamos, imponderável. Recolhe a bola para a linha de fundo. Sucumbiu perante a adversidade? Deixou-se pender à crueldade dos homens como a ave infortunada de Baudelaire? Três opositores o circundam, impedindo sua saída. Não há o que fazer. Então, P. H. Ganso suspende a bola com finura, com delicadeza, (perdão, Drummond) com a doçura de um elefante. O albatroz suspendeu as asas. A pelota faz uma polida parábola, perfeita como um arco renascentista. A multidão percorre a trajetória tal qual o traço de um compasso até a esfera encontrar a cabeça do atacante santista, arrematando a obra-prima com a derradeira pincelada do gol. Genial poesia.
Paulo Henrique Ganso é um albatroz da bola. Não tem a elegância do falcão (o Rei de Roma?) nem a fome do galo (de Quintino?). Nesta rinha, é apenas um desajeitado caminhante. Tem um caminhar falso, desmedido, com deselegância discreta (desculpe, Caetano). O tórax é frágil, quase corcunda. Sem a bola nos pés, apenas caminha de esguio diante da pobreza cotidiana. Com ela, é o majestoso que “enfrenta os vendavais e ri da seta no ar”. (Charles Baudelaire. O Albatroz.)
Cisne. O ex-técnico de Paulo Henrique, o esforçado meia-direita Cuca, disse, certa vez, quando ainda Ganso atuava na base, que o jovem atleta não dispunha de qualidades para alçar ao time principal do Santos F.C. Não o culpo. É difícil reconhecer o pequenino cisne que, deslocado entre tantos patinhos, é o feio do grupo. Faltava-lhe a obediência tática, o apuro físico, a velocidade do arranque, a entrega desmedida ao resultado. Após sua estreia no comando do Flamengo, seu técnico no vice-Mundial Sub-20, Rogério Lourenço, disse que sempre sacava Ganso da equipe pois o jogador não cumpria suas determinações táticas. “Desobediente, então”, indagou o perspicaz repórter. “Não, desligado”, respondeu o treinador. Eu diria um torto, um desajustado. Parafraseando novamente o itabirense, “um gauche na vida”.
Nesta época, Ganso ainda era um patinho feio para Cuca e Rogério Lourenço. Menos para Giovanni, que o trouxe com quatorze anos para o Santos F.C. O messias já via o cisne que Paulo Henrique se tornaria. Uma espécie reconhece a outra.

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