quinta-feira, 15 de abril de 2010

O crepúsculo de um imperador


por Luciano Melo
Meu velho um dia falou
Com seu jeito de avisar:
- Olha, o mar não tem cabelos
que a gente possa agarrar
Paulinho da Viola - Timoneiro
*
A semana não está sendo fácil para Adriano. Os morros de sua cidade se desmancham por todos os lados como sorvete, desintegrando-se pelas encostas carcomidas de lixo e descaso. Se nem o Cristo dá conta de tamanha tragédia anunciada, o Rio se emudece e vê seus filhos enterrados entre os escombros, tal qual um enterro coletivo ao céu cinzento.
Já a paixão-mor da metrópole, seu rubro-negro de profissão e coração, não alheio ao drama, padece no torneio continental, respirando por aparelhos. Pena para não sofrer uma vexatória derrota em terras estrangeiras, clamando por piedade e clemência. E se não bastasse apanhar dos universitários chilenos com demasiada apatia, decide toda a fortuna de sobrevivência na copa contra o time do pirado Hugo Chávez, num jogo que tem tudo – mas tudo mesmo - para ser um dos mais angustiantes e penosos noventa minutos da história recente flamenguista. Ah, sem nos esquecer da decisão fluminense contra a Estrela Solitária de “Loco Abreu”, o predestinado à camisa 13 de Mário Jorge e convicto a calar a massa e a alma “urubuzadas”. Tudo isso no palco favorito em tornar reais as desgraças mais inimagináveis do mundo futebolístico: o estádio do Maracanã.
Como tudo isso é “pouco” e é “bobagem”, esta semana também reservou o desfecho do caso com a turbinada e oxigenada patricinha de “Leblon Hills”. O imperador não fugiu à estirpe da realeza e ateou fogo para todos os lados, incendiando o tráfico, o baile, a mídia, a brutalidade verborrágica e o próprio Flamengo. Para encerrar, com requintes de insanidade, caligularmente amarrou sua fêmea ao pé de uma árvore. É o fim.
Tudo isso em uma semana. Às vésperas do compromisso no Chile, com escalação certa, Adriano foi cortado da delegação por “dores nas costas”. Mentira. Como também fora no final de 2009, quando se afastou por bolhas no pé provocadas por queimaduras no tambor de uma moto. Ou foi numa lâmpada? N.D.A. Tudo mentira.
Adriano perdeu a alegria. Não quer mais saber do futebol. Não, não esse pelo qual somos apaixonados, como ele também é. O imperador não quer mais saber do profissionalismo, da vida de atleta, dos compromissos comerciais com patrocinadores e televisão. Na verdade, nunca quis. Se pudesse, estaria até hoje jogando pelada em campos improvisados pelos flancos do morro da Chatuba e traçando pipas com a linha envenenada de cerol, trepado em muros e lajes.
No entanto, o grande dilema, como diria o João Nogueira, é ser o “espelho de seu pai”. Adriano nunca conseguiu ou teve coragem de quebrar o encanto do sonho de seu velho em um dia testemunhar o filho desfilando no “Maraca”, pintado em rubro-negro, uma vez, até morrer. O pai se acostumou a ver seu filho, desde muito criança, entortar marmanjos em terras batidas ou na malemolência das areias. Adriano nasceu para isso, e o destino quis assim. Mas ele mesmo, não.
Todavia, tudo compensava ao perceber a alegria do velho em vê-lo brilhar nas peneiras da Gávea. Adriano sempre soube que ele próprio era o alter-ego de seu pai, o fantasma de um sonho que se tornava palpável ao enxergar o talento descomunal de seu rebento. Nosso futuro imperador repousava toda a angústia lírica na alegria do pai, pois abrira mão de toda a sorte pela felicidade de seu criador. Não havia mais o baile, o dominó, o namoro nas construções, a pelada diária. O menino se tornara um profissional da bola.
Também não pense o leitor que Adriano não gostasse de dinheiro e fama. Aproveitou o quanto quis: carrões “nitrados”, o pó mais fino, o caríssimo e dolarizado whisky “envelhecido” e motéis luxuosos com aspirantes a globais. Mas hoje, talvez pondere que tudo isso tem um preço elevadíssimo, bem maior que os juros que engordam sua conta bancária.
E quando pensava em jogar tudo para o alto, lá estava seu pai. O mais orgulhoso dos pais. No morro, era o rei. O pai do imperador. Quando retornava de Milão, trazia as camisas 10 do filho aos montes, distribuindo a amigos e familiares. E como cresceram estes amigos e familiares. Ajudava a todos, pois era desejo dos dois. Eram heróis.
Mas se Adriano se empanturrava de pastas, vinhos e modelos, sentia cada vez mais falta do cheiro do mar carioca, das ancas da morena requebrando pelo morro, das tardes rubro-negras no velho Maracanã. E quando pensava em jogar tudo para o alto, lá estava seu pai.
Até o momento em que o velho partiu. A vida não fazia mais sentido. Internazionale, Copa do Mundo, dinheiro, fama, nada. Como seu pai, Adriano desapareceu. Inundou-se no álcool e não saiu mais. Fugiu de tudo e de todos e retornou para seu ninho, para seu mundo, para sua vida, para “perto do velho”. Com a família e os amigos a volta, reencontrou a paz. Largou a bigorna dos compromissos profissionais e com renda para sustentar uma dúzia de gerações vindouras, queria apenas ter o que sempre foi seu, de direito: a infância roubada pelo sonho do pai.
Porém, uma vez, até morrer. Estar com o pai é estar no Flamengo. A Gávea, o manto rubro-negro, o cimento da arquibancada... Tudo isso cheira a seu pai. Cobrir-se com a 10 de Dida e Zico é ficar abraçado com seu protetor, sentir seu afago, sua voz grave, sua mão pesada de dedos grossos acariciando seu rosto.
E Adriano jogou como nunca. Dividiu com um craque sérvio a obrigação de devolver o sorriso cariado do genuíno torcedor flamenguista, o time das multidões deste país. No final de 2009, o Brasil se pintou em vermelho e preto graças ao talento de um jovem imperador que fora descoberto por seu próprio pai.
Pode parecer que não, mas Adriano chegou ao ápice. Pelo menos, para ele próprio. A dívida com seu pai estava paga. Conquistou o país com a mantilha rubro-negra e tem certeza de que seu pai assistiu a tudo.
Este 2010 não significa mais nada. Carreira? Concentração? Treino? Libertadores? Nada. E a Copa do Mundo? É melhor que nem o convoquem. Agora, quando pensa em jogar tudo para o alto, seu pai não está mais aqui.
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É engraçado, mas me veio à mente que o Adriano pode ser nosso Garrincha de hoje. Estou certo?
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Adriano é o Gênio da Raça da semana. E é Morte ao Futebol Moderno.

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