terça-feira, 30 de março de 2010

O trem da vida

por Luciano Melo
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Construímos o cômodo há pouco mais de dois anos. Era sonho de meu pai dispor de um espaço extra na casa como um clube social, um recanto para exercer o prazer de uma boa prosa. “A sala”, diz ele, “é feita para as mulheres tricotarem”.
Nisso não tiro sua razão. Há um prescrito ritual ao se “fazer sala” para alguém. Os anfitriões disparam à frente da visita para averiguar o estado do recinto. Numa rápida execução, organizam toda a porcariada espalhada pelos cantos do ambiente: jornais, almofadas, chinelos, controles, bibelôs... para, em seguida, dispararem a corroída fórmula “não repara na bagunça!” Então, os visitantes são alocados nos melhores lugares do sofá, geralmente localizados à frente da televisão. Liga-se o aparelho apenas para “harmonizar o local”, mesmo que naquele instante um âncora engravatado esteja disparando enchentes e chacinas para todos os lados, pois o que interessa mesmo é pôr a conversa em dia. Poucos minutos depois, chegará uma bandejinha prateada repleta de quitutes e uma garrafa térmica com o cafezinho passado na hora.
Aliás, a hora da boca livre é o termômetro do sucesso do evento. Se o encontro estiver animado, as guloseimas serão desprezadas como um cão abandonado e o café congelará na xícara, tamanho o interesse na vida dos outros. Mas, se o rumo prosa for de uma sonolência sem fim e a maior novidade é que o filho da sua querida tia (aquele mesmo mala que sempre te aporrinhou) enfim tirou o diploma e se formou em... 2006! Bem, é melhor repor os petiscos e botar a água no fogo.
Não, definitivamente meu pai não queria isso.
Para maior privacidade no local, até construímos um minúsculo banheiro para não atrapalhar o cotidiano da casa. E garanto ao raro leitor: o espaço sobrevive em plena democracia!
Como somos apaixonados santistas, meu pai comprou uma televisão para acompanharmos os jogos do glorioso alvinegro praiano. Estaríamos assim isolados de toda a complexidade antropológica que reserva a ocasião retratada acima. Nada, mas nada mesmo contra a quem de coração e braços escancarados recebemos em nossa humilde choupana, mas a apreciação de uma partida de futebol requer uma dedicação franciscana. Desculpe, mas não dá para conciliar os prazeres e os dissabores de uma peleja do Santos FC com as desventuras errantes de acatados parentes. Sorry.
Para parcos momentos íntimos da vida, privacidade é tudo. Nisso, raro leitor, você não há de discordar.
E, ao léu da proa, sem a menor intenção, nosso espaço se tornou um retiro maçônico para arrebatados torcedores de futebol, santistas ou não. Mas, ressalto: aqui, as viúvas de Pelé são maioria.
Como o Juarez, um caso à parte.
Juarez foi o neófito do clube. O primogênito. Da mesma idade de meu pai, era um torcedor incomensurável do Santos FC. Fazia pose de ranzinza e qualquer claudicação de um jogador era a razão de excomungá-lo por quatro gerações passadas e três vindouras. Eu não entendia isso, mas meu velho, sim. Os dois viram inúmeras vezes in loco o mágico esquadrão alvinegro desfilar no imaculado Pacaembu, em longínquos anos 60. Então, voltar à terra firme e, cinco décadas transcorridas, comparar este mundo com aquele é ingênua quimera. Meu pai sabia disso. Juarez, não.
No entanto, era delicioso assistir às batalhas santistas com ele ao lado. No dia anterior a uma partida, encontrava-o bufando, desfechando mil demônios contra a possível escalação do time. Nunca, mas nunca mesmo, concordava com os onze que estariam recheando o manto santista no dia seguinte. Já nas horas antes da peleja, ninguém o encontrava em canto algum. Acho que ele ficava se remoendo em sua poltrona preferida, perfilando inusitadas jogadas que, por esmero, resultariam em gols naquela tarde. Talvez já as tivesse deslumbrado quando convivia com os fabulosos negros Mengálvio, Dorval, Lima, Coutinho, Edu e Pelé. Mas o fato é que nenhuma viv’alma topava com o Juarez neste momento. Era a profunda clausura num mausoléu medieval.
Então, restando escassos minutos para a peleja, chegava Juarez. Cara amarrada, praguejando contra tudo. Até dos patrocinadores que emporcalham a brancura do véu santista.
Ele tinha razão.
Durante o jogo, era impossível se conter. Mais pragas e pragas. A cada ataque desperdiçado, arrancava com atrocidade um surrado boné e alisava os poucos fios de cabelo que ainda resistiam sobre a cabeça ensopada de suor. Roia vorazmente as unhas e, quando já tinha mais o que comer, cerrava os punhos até arrebentarem as veias pelo dorso das mãos. No intervalo, mais insultos. Praguejava até contra o replay, como que se ali pudesse mudar a sorte do lance. Era incorrigível.
No momento do gol, enquanto nos abraçávamos num combinado de alegria e alívio, Juarez cobria o rosto com o empapado boné e levantava os dois punhos ao firmamento, quase como numa prece. Ainda tenho comigo que devia pronunciar algo parecido a um credo, com o rosto encoberto.
Retornado do transe, voltavam as pragas. E mais pragas. Embora, se num lampejo o ataque alvinegro faiscasse uma tabela, um lançamento preciso, um passe de letra, Juarez esgarçava o canto da boca, imitando um sorriso. Quem sabe voltasse ao passado naqueles ínfimos segundos.
Seja como for, sua fama cresceu. Muitos passaram a freqüentar nosso recinto pela pura traquinagem de compartilhar uma partida com ele. Sua rabugentice era deliciosa! E as histórias? Eram imperdíveis. A cada jogo, com memória prodigiosa, relembrava partidas e jogadores que nunca saíram de sua alma alvinegra.
Hoje, nossa coletividade recebe novos integrantes. Aficionados santistas da rua e adjacências freqüentam nosso recinto para apreciar a fuzarca que os meninos provocam a cada prélio. Eu e meu pai nos orgulhamos disso.
Infelizmente, no final do ano passado, por conta de graves problemas renais, Juarez foi embora antes do combinado. Ainda o trouxemos para casa depois de seguidas internações, mas o velho rabugento, teimoso, nos deixou.
No hospital, eu e meu pai fomos visitá-lo. Não sabíamos que era a última vez que iríamos trocar algumas palavras. Na maca, cheio de agulhas perfurando os braços, os olhos pálidos e fundos, os fios de cabelo desgrenhados e bastante debilitado, com dedo indicador pediu para me aproximar e sussurrou bem baixinho, quase imperceptível:
- Ainda dá para ser feliz com o Santos?
Erroneamente, respondi que não se preocupasse com aquilo. O importante era sair dali com saúde para ainda desfrutar da vida. Hoje, acho que o melhor seria ter engatado uma conversa descontraída sobre futebol, mulheres, ou o assunto que fosse. Ele sabia que aquele era nosso último encontro.
Desculpe, leitor, mas não consigo mais escrever. Meus olhos, por mais que tente secá-los, não dão mais conta de enxergar a tela.
Obrigado, Juarez, meu velho. Sempre dá para ser feliz com o Santos. A vida sempre vale a pena.

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