domingo, 29 de agosto de 2010

Cada um com o seu cinema

por Luciano Melo
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Há algum tempo assisti à entrevista de David Lynch no programa Roda Viva (TV Cultura). A maior parte das perguntas versava sobre meditação, assunto pelo qual o cineasta tem feito seu “carro-chefe” nestes últimos anos. Desde que começou a se aprofundar nos caminhos do mantra, considerável parcela de suas palestras e entrevistas é reservada, com certo empreendedorismo, à causa da harmonização mental e aos avanços biocientíficos que a medicina começa a absorver através do poder da concentração mediúnica.
E conversa vai, conversa vem, e nada de falar de cinema. Não que o assunto sobre os benefícios arraigados pela mente seja desprezível ou aporrinhador, mas quem (como eu) esperava uma boa conversa sobre a sétima arte, ficou um pouco frustrado. Lá pelas tantas, depois de quase uma hora de “meditação”, as perguntas foram tomando o rumo dos filmes, do processo criativo, do roteiro e da montagem, e aí o bate-papo ficou um pouco mais interessante. Um pouco.
Das poucas palavras tratadas sobre cinema, dois assuntos aguçaram minha atenção. Um dos entrevistadores pergunta sobre a importância do sonho na filmografia do diretor. Curiosamente, as duas únicas películas que assisti até agora de David Lynch são Cidade dos Sonhos e Império dos Sonhos! A recorrência do devaneio e da ilusão na obra de David Lynch é tão freqüente quanto Nova York para Scorsese (que, aliás, é o outro assunto que trataremos adiante). Diante da obviedade do tema, o cineasta revelou o que parece ser o encaixe no buraco da fechadura: “não trato do sonho, mas de uma realidade paralela”. Para o diretor, o cinema seria uma espécie de portal entre um plano sinestésico, táctil, e outro no qual as impressões adquiridas daquele estão sobrepostas por uma espécie de redoma de signos e símbolos. Qual seria, portanto, a verdadeira realidade? Para o cineasta, não há resposta. E é dispensável dizer que a conversa caiu de novo para a meditação.
Num outro instante, David Lynch é questionado sobre quais filmes ou diretores que mais chamaram a atenção do cineasta nestes últimos anos: “Não tenho muito tempo para acompanhar as recentes produções”, afirma. Mas, além de um iraniano que nunca ouvi falar, Almodóvar é uma das figuras “recentes” que mais chama atenção de Lynch. Quando o assunto parecia murchar e voltar aos benefícios do alcance do nirvana, o entrevistado dispara: “Aliás, não sei como o Scorsese consegue assistir a tudo aquilo que ele diz”. Deboche? Inveja? Ego insuflado? Não sei, mas que ficou estranho, ah, isso ficou.
David Lynch não é apenas um diretor de cinema. É um artesão na concepção da palavra. Artista plástico, compositor e escultor são algumas das atividades que compõem, junto à direção cinematográfica, o exercício que Lynch procura ofertar em sua peculiar linguagem. A película torna-se uma manifestação estética daquela já citada realidade paralela que tanto persegue o cineasta, imbricada em uma série de labirintos visuais que tanto abusam do juízo do espectador.
Já Martin Scorsese cheira a rolo de 35 mm. É andar por Manhattan ou pelos becos escuros do Harlem e se deparar com personagens de Taxi Driver. Se o alvo de Lynch é a realidade sobreposta à realidade, o de Scorsese desliza pelos acordes de um negro de New Orleans, escorrega pela garganta rouca de Dylan e até ziguezagueia entre Stones.
Se David Lynch parece estar indiferente ao que vão falar em cada estréia, pois sua mira não aponta para isso (?), Martin Scorsese sabe que é fundamental estar à deriva de tudo. É homem de festivais e de circuitos, do “mainstream” do cinema. Pode não assistir a tudo, mas sabe que é preciso sempre ter algo a dizer. E cada um no seu cinema.

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